Caminhos de ferro
EMBARQUE
O trem já foi o melhor meio de transporte no passado. Será também a melhor alternativa para o futuro? O Especial Transmídia deste mês nos leva a uma viagem pelo universo da logística ferroviária no Paraná.
A reportagem comemora um ano do Especial Transmídia da Folha de Londrina, projeto de inovação em narrativas digitais, que propõem o cruzamento do discurso jornalístico com o literário, uma quebra cronológica a fim de criar o ambiente ideal para contar histórias e levantar debates sobre o presente, o passado e o futuro dos trilhos no Estado.
Em uma linha contamos a viagem através das paisagens e o clima nostálgico e inebriante do trem de luxo de passageiros que faz a linha Curitiba - Morretes. Conectada a uma reflexão sobre a viabilidade das viagens de passageiros em comboios ferroviários.
Em paralelo, a reportagem percorre o traçado das estradas de ferro desativadas que cortam o Norte Pioneiro e narra a decadência de povoados, que chegaram a despontar economicamente na época de ouro do transporte de carga e passageiros por cidades como Cambará, Cornélio Procópio e Jataizinho, mas que sumiram ou chegaram bem perto disso após o declínio das ferrovias.
Cruzando as histórias, entrevistas com especialistas e estudiosos da logística no Paraná, este Especial Transmídia traçará o perfil econômico, os números e as ações que podem mudar o futuro da logística em território paranaense.
Embarque nesse comboio, leiam, assistam aos vídeos, aproveitem as histórias em 360°, o conteúdo exclusivo em realidade aumentada e se encantem com as imagens exuberantes da paisagem paranaense nos ensaios fotográficos. E principalmente integrem essa reflexão sobre o futuro dos transportes ferroviários. Obrigada pela atenção, senhores passageiros, e tenham todos uma boa viagem.
(BETA: Este é um projeto da FOLHA DE LONDRINA com novos formatos e experiências em jornalismo imersivo. Uma melhor performance foi verificada em desktop e recomenda-se o acesso com conexões de alta velocidade. Algumas mídias podem ter o funcionamento comprometido em aparelhos móveis. Se encontrar algum erro durante sua experiência, deixe-nos saber multimidia@folhadelondrina.com.br e BOA LEITURA!)
ONTEM, HOJE
Entre o final do século 19 e início do 20, o transporte ferroviário no Brasil – de passageiros e de cargas – viveu o seu auge. Naquela época, o trem era o meio de transporte que melhor permitia interligar as capitais ao interior, tornando mais fácil o deslocamento da população ao mesmo tempo em que garantia o desenvolvimento econômico das regiões. Mas o setor entrou em forte declínio a partir da década de 1950, durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek, quando o processo de industrialização e urbanização passou a priorizar as rodovias em detrimento das linhas férreas. O início da valorização do transporte rodoviário decretou a decadência das empresas ferroviárias, que começaram a falir.
Hoje, a malha ferroviária brasileira é inferior a 30 mil quilômetros de extensão. Mais de 30% dos trilhos ferroviários do País estão sem condições de uso e 23% deles não têm condições operacionais, segundo aponta levantamento realizado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) com base em dados da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Promover o aumento da conectividade do sistema, ampliar a malha e dar mais velocidade aos comboios, afirma a entidade, é o caminho para a superação dos gargalos do setor.
SERRA DO MAR
OS COMISSÁRIOS DE BORDO
Sejam bem-vindos ao Litorina Foz do Iguaçu, o primeiro trem de luxo do Brasil e o segundo passeio turístico mais procurado no País. Perde apenas para as Cataratas! Aceitam uma espumante de boas-vindas? Podem se sentar aqui e fiquem à vontade. Vou preparar o café da manhã para os passageiros e já preparo um para vocês também. Hoje vamos servir croissant de presunto e queijo, pãozinho, geleia e um café quentinho, mas se preferirem temos chá gelado e sucos.
Eu faço isso há quase seis anos, já estou completando 2.000 viagens com o trem. Duas mil, será? Bom, se não for, estou bem próximo disso. Este trecho Curitiba a Morretes tem 68 quilômetros, eu desço e subo com o trem; 136 quilômetros, quanto isso dá? Já faço o lanchinho de vocês. Mais cinco prontos, Talita! Eu trabalhava com gestão de negócios antes. Até eu me divorciar. Foi um período de grandes mudanças na minha vida. Eu precisava de coisas novas. Aí eu entrei no curso técnico de hotelaria e me tornei um guia autônomo. Todos nós que trabalhamos no trem somos guias formados.
Foi durante esse período que eu soube do curso da Serra Verde Express. Aqui está, espero que gostem de lanchinhos bem passados que comecei a conversar e esqueci do forno. Mas o queijo está bem crocante! Foi no final de 2012, início de 2013, que comecei a trabalhar na Litorina. Somos em 30, 35 guias, conforme o período, se é alta temporada trabalhamos em mais pessoas. É fácil? Não é, mas é prazeroso. Como posso dizer? É uma questão de energia, de trabalhar com o público, que é algo que gosto muito. O passeio é bacana. Tem a paisagem incrível, a história. Minha vida ficou corrida. Não dá tempo de pensar em problemas.
Aceita mais um chá gelado? E, você, mais um espumante? Aqui está. Eu me encontrei nesse trabalho. Não me vejo fazendo outra coisa. E eu conheci minha esposa no trem. Ela desceu com o trem de turismo das 8h30 nesta manhã. Nos conhecemos quando começamos a trabalhar aqui, começamos juntos. No início éramos só amigos, juro! Por três anos, e depois aconteceu. Nós somos todos muito amigos aqui. Inclusive a Talita a conhece, fim de semana saímos juntos para nos divertir. Venha cá Talita, conta a sua história depois.
Já aconteceu muita coisa aqui. Temos sempre muitos pedidos de casamento. Ajudamos, colocamos os vídeos dos casais, fazemos as surpresas, todo mundo se diverte e se emociona. Mas teve uma história que me marcou muito. Certa vez, um senhor bem velhinho viajava conosco e me contou que estava fazendo uma homenagem para a mulher dele. Ela havia falecido não tinha umas duas semanas e era apaixonada por trens e por esse passeio também. Então ele resolveu ir. Quando chegamos ao viaduto do Carvalho, o trem parou. Ele pediu. Tirou um bauzinho da mala. Seu Lilio, o maquinista, viu tudo também, ele pode confirmar. Quando abrimos a porta, ele abriu o baú. Tinhas as cinzas da mulher dele. Ele as jogou no ar. Ele chorou, nós choramos. Foi uma cena inesquecível.
MARCO JOSÉGestor empresarial, guia de turismo e comissário de bordo da Litorina de luxo da Serra Verde Express.
SENHORA FERROVIA
Só um minuto, vou verificar se os passageiros precisam de algo mais e já venho. Deseja mais alguma bebida, senhor? E vocês estão bem? Posso servi-las algo mais? Então eu vou ao microfone contar a vocês uma história.
Vocês sabiam que a nossa ferrovia é uma senhora ferrovia? Ela ajudou muito no desenvolvimento do Estado do Paraná e desde sua inauguração, no finalzinho do século 19, nunca deixou de ser transitada por trens de passageiros e de carga. Sua construção nos remete ao período imperial de Dom Pedro 2º. Foram os famosos irmãos Rebouças os responsáveis pelo projeto. Eles vieram ao nosso Estado para criar o projeto da Estrada da Graciosa, que deveria suprir a demanda por mais infraestrutura, estradas maiores, para que os produtores de madeira e de erva-mate pudessem carregar mais produtos e com mais segurança para o porto de Antonina, que foi o maior centro comercial do Brasil no período imperial.
A ideia inicial do projeto de 1865 era ligar Antonina à cidade de Assunção, no Paraguai, já que exportávamos muito dos nossos produtos aos nossos vizinhos da América Latina. Mas com a deflagração da Guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança - Brasil, Uruguai e Argentina - um ano antes, em 1864, o projeto foi engavetado e retomado em 1880, já com o foco em Paranaguá. A ferrovia Paranaguá-Curitiba teve na época 110 quilômetros de extensão lapidados na Serra do Mar em cinco anos, estima-se que 9.000 homens ajudaram a construir essa que é considerada até hoje uma obra-prima da engenharia.
E tem algo muito marcante nessa história, ao contrário do que era comum à época, não foi utilizada mão de obra escrava em nenhum momento de sua construção. Como os irmãos Rebouças eram os primeiros engenheiros negros do Brasil, reconhecidos internacionalmente, eles pediram ao imperador que todos fossem assalariados e bem remunerados devido aos riscos que corriam nos trabalhos na serra.
Em novembro de 1884, a princesa Isabel e sua comitiva fizeram a viagem inaugural, e levaram 12 horas, parando em alguns pontos até Paranaguá. Só em fevereiro de 1885 é que a ferrovia foi liberada para o tráfego normal de passageiros e está em operação contínua até hoje, faz 133 anos.
Os trens da Serra Verde Express começaram a percorrer esse caminho há 21 anos, e eu estou nessa jornada há dois anos. Aproveitem a paisagem.
Vou sentar aqui um pouquinho com vocês. Sou geóloga de formação, trabalhei por seis anos na área, entre 2010 e 2016, em uma empresa responsável por projetos de engenharia. Mas então veio a crise e a empresa fechou. Fiquei desempregada por um tempo e como meu pai já trabalhava com hotéis na Ilha do Mel, ingressei no ramo do turismo também. Lá eu conheci a filha de um guia que trabalhava com o trem e ela me contou sobre o curso. Eu conheci meu marido durante as aulas, ele também estava fazendo a formação de guia. No fim do curso começamos a namorar e a trabalhar juntos aqui. Ele está no outro trem, vocês vão conhecê-lo. Ele vai passar aqui no fim da viagem.
A ferrovia mudou minha vida em vários sentidos. Aqui nós aprendemos muito, com as necessidades do próximo, a ter empatia, no trem você precisa estar sempre atento. O trem é nostálgico, tem a questão de família, traz lembranças, você trabalha com a emoção das pessoas. Eu gosto muito desse trabalho e hoje não me vejo fazendo outra coisa.
TALITA SANTOSGeóloga e comissária de bordo do Litorina de Luxo da Serra Verde Express
O MAQUINISTA
Agora, dia 17 de maio, fez 41 anos que eu trabalho com trem. Já estou aposentado, mas continuo ativo. É uma profissão que eu gosto. Por isso não parei de trabalhar. Meu pai foi maquinista. Com 21 anos, comecei como auxiliar de maquinista. Já tinha tentado carreira em outros setores. Fui seguir carreira militar em Brasília, cumpri meus anos de serviço obrigatório lá. Eu fui trabalhar em outros lugares. Entrei na companhia de petróleo que hoje é a Petrobras. Mas aí eu fui fazer o concurso para a ferrovia e entrei no que eu queria. Meu pai fazia as manobras no Porto de Dom Pedro em Paranaguá e eu sempre ia levar o cafezinho da tarde e ficava na locomotiva passeando com ele por uma meia hora. Isso nunca saiu da minha mente.
Quando eu completei cinco anos como auxiliar eu passei para maquinista em um concurso. Trabalhei no planalto por um ano e depois vim trabalhar na Serra do Mar onde estou até hoje com essa profissão. Sou natural de Paranaguá. Nasci no dia 15 de novembro de 1956, no dia de Nossa Senhora do Rocio, padroeira do Paraná. Por isso eu me chamo, Lilio do Rocio. A gente tem que honrar, não é? Não trocaria por nada.
Eu tentei uma vez, comprei uma van para ser motorista, mas é aqui que está o suor, não tem jeito. Olha um bichinho passando ali, olha o bichinho. Ih perdeu! Era tipo um furão. Tenho muito amor, gosto do que faço, tenho prazer em ensinar outras pessoas. Alguns maquinistas que eu treinei ainda estão trabalhando e outros já se aposentaram na ferrovia. Quando a gente precisa de mais maquinistas, eu ensino o pessoal a trabalhar na Litorina. O curso hoje é feito pela Rumo. Mas é bem pouco quem procura. É difícil. Dá a impressão que a profissão que está se extinguindo. O futuro do maquinista está complicado. A gente fica até triste de saber que fulano entrou, ficou dois anos e saiu. No meu tempo não era assim. No meu tempo a pessoa entrava e criava raiz, como eu.
Litorina. Sete mil chamando Ivanir, câmbio. Bom dia, Ivanir, podemos passar no local? Câmbio. Livre do boletim de Ivanir, obrigado meu filho. Câmbio. Na escuta, positivo, livre, livre.
Romântico? Não acho a profissão romântica, não. Mas para mim não tem tristeza. Olha ali ó, esse cachorrinho vem sempre esperar a gente aqui, olha ele! Quando acabou a rede ferroviária do jeito que era antes eu fui trabalhar para a ALL e em 1º de abril de 2000 comecei na Serra Verde.
O trem de carga está partindo e vai passar aqui do lado. Esse rapaz que passou, o pai, falecido já, era maquinista. Alguns pais conseguiram que seus filhos gostassem e entrassem na profissão, como no meu caso e no dele. Mas é raro. Uns ficam por um tempo e saem. Os que têm mais estudo, sabe?
Aqui a Serra do Mar é muito bonita. Pessoas de todos os lugares visitam, da Alemanha, do Japão, dos Estados Unidos, de todos os lugares. É com prazer que a gente mostra tudo. Do Brasil, vêm de São Paulo, Porto Alegre, Minas, Rio de Janeiro, vem muita gente. Até a Ana Maria Braga já veio aqui. E depois, vieram pessoas que diziam “eu vi você na televisão”. É muito bom para a gente.
Passou a cauda aqui, Valério, 613AL, positivo, bom trabalho, positivo, boa viagem para você também e até.
Aqui já teve até casamento na cabine do maquinista. Aniversários, bodas de ouro, de prata. São histórias muito marcantes para a gente. Tem bastante demanda, o trem de turismo vai puxando mais de trinta vagões. Pelo menos umas 1.500 pessoas por viagem. A maioria volta de ônibus ou van, mas tem muita gente na volta também. A Litorina de luxo, que tem menos lugares, sempre viaja cheia, tem apenas três vagões a Foz do Iguaçu, este em que estamos. E na Copacabana cabem 23 pessoas em cada e na mais nova, Litorina Curitiba, cabem 40.
Antes tinha trem de passageiro em todos os lugares. Tinha os trens de subúrbio que levava os trabalhadores que moravam em outras cidades. Além das Litorinas. Não tenho as contas de quantos quilômetros já rodei. A gente trabalha de segunda a domingo, em férias escolares e de sexta a domingo em baixa temporada. Somos em dois maquinistas na Litorina, eu e o Natal. A gente até brinca que aqui na ferrovia temos Natal o ano inteiro.
Eles estão fazendo limpeza aqui na ferrovia, estava muito mato. Hoje, uma criança com cinco ou seis anos já sente que gosta de trem e muitas vezes nunca viu um. É como ver o mar pela televisão e não tocar a água. A gente escuta de pessoas que provam a água do mar para ver se é salgada. Olha lá do lado. Esse povo vem aqui fazendo trilha. Tem bastante aqui. Olha lá em baixo. Estão vendo? Aqui é assim, 99% você de olho na linha.
LILIO DO ROCIO SAMPAIOMaquinista da Serra do Mar
NA ESTAÇÃO
Eu trabalho aqui faz um bom tempo já. Acho que uns sete anos. Mas no passado eu já tinha trabalhado aqui, na lanchonete da estação, bem aqui do lado, trabalhei muitos anos lá com o dono, excelente patrão. Mas aí depois eu montei minha barraquinha aqui.
Eu trabalho bastante quando nessa época assim de férias escolares que desce bastante trem. Eu chego umas onze horas e desmonto tudo e vou embora depois do trem das 15h. Nossa barraquinha aqui a gente faz tempo. A gente tem um depósito aqui atrás para guardar nossas coisas. Mas está caindo aos pedaços. O teto já está perigoso, dá medo. Mas a empresa que assumiu agora disse que vai reformar tudo aqui, a estação, nosso espaço. Espero que fique bom, que melhore!
Tem bala de banana, bala de gengibre, tem sem açúcar também se preferir, tem chips de banana, esse tem canela, o salgado está ali separado. Esse pacotinho é dois reais. Fica à vontade.
O trem ajuda muito a todos nós. A gente vive aqui, a maioria de turismo e o trem traz muita gente. Eu nasci aqui em Morretes e não tenho outro lugar para ir. Se não vem o trem, eu fico dependente. Então minha filha me ajuda.
Se não fosse a ferrovia, seria muito difícil a vida.
EULÁLIA COELHOComerciante de Morretes
A VOLTA
Sejam bem-vindos, faremos juntos essa viagem de volta, mas antes preciso dizer algumas regras. Não pode transitar entre os vagões, somente quem está trabalhando você vai ver fazendo isso. Não pode fumar; não pode colocar cabeça, perna, tronco para fora do vagão, compartilhamos a linha com os trens de carga que passam muito perto, assim como a natureza também. Um desprevenido pode levar uma galhada na cabeça e vai doer. Cuidado com as crianças e por último, mas não menos importante, não deixem cair seu celular, mas se cair já digo para jogar o carregador e a senha junto que vai facilitar para quem encontrar que a gente não vai parar para buscar.
Agora quero saber de vocês, aproveitaram Morretes? Comeram barreado, experimentaram bala de bala, chicletes de banana, sorvete de banana, chips de banana, chips salgados, chips doces, de gengibre, cachaça de banana? Logo mais estarei passando os kits viagens de vocês e então vou contar a história da ferrovia.
Enquanto isso sugiro a vocês olharem a paisagem pela janela e não pela telinha do celular, hein! Nossa viagem tem previsão de quatro horas, e por volta das 19 horas já estaremos em Curitiba.
Eu sou formado em guia regional do Paraná há dois anos, e aqui no trem eu trabalho desde março fazendo a viagem em finais de semana. Durante a semana eu trabalho fazendo os roteiros das viagens. Gosto bastante de estar no trem, você presenciou, é um momento muito gratificante. Passar todo o conhecimento que a gente tem, que a gente estuda, para as pessoas e ver seu interesse. Eu gosto de mostrar um pouco da cidade. Apesar de eu não ser daqui eu sou carioca. Estou aqui desde 1997, então eu vejo como uma forma carinhosa de retribuir para Curitiba todas as coisas boas que tenho vivido aqui.
Cada tipo de trabalho tem suas magias, aqui nós estamos trabalhando em cima de uma ferrovia centenária, como você escutou durante a viagem. Existe todo um trabalho de construção de personagem, reconstrução de cada época. No trabalho fora daqui também tem seus marcos, uma praça, um museu. Uma arquitetura diferente. Mas a expectativa de quem entra no trem é muito grande, o trem é muito nostálgico.
Eu costumo sempre dizer, as pessoas sempre fazem a mesma viagem três vezes, quando a planeja; enquanto percorre o caminho e quando a relembra. Tem muita gente que traz na memória de quando era pequeno e andava de trem com seus pais, e então, no fim, a gente complementa essas memórias com a nossa história.
LISANDRO DO NASCIMENTO VASCONCELOSGuia de turismo do trem Serra Verde Express
NOSTALGIA
O COLECIONADOR
EMPERRADO
Elevar a participação do modal ferroviário no transporte de cargas no País é possível, defende a CNI, mas antes é preciso que sejam feitas mudanças nos contratos com as concessionárias que operam as ferrovias. “Os contratos foram firmados na época da privatização (na década de 1990) para atrair investidores, um momento muito diverso para o País, que tinha um sistema endividado e sucateado. Mas a privatização resultou em ilhas ferroviárias”, avalia o especialista em Infraestrutura da CNI, Matheus de Castro.
A principal falha no atual modelo de concessão, aponta Castro, é a falta de condições para a integração da malha ferroviária. Além dos contratos, o entrave está na regulamentação legal do sistema e nas resoluções da ANTT, que criaram amarras que dificultam o compartilhamento das ferrovias. “Isso precisa ser discutido na renovação dos contratos. É preciso que haja a previsão legal de que cada concessionário irá reservar um percentual da capacidade da ferrovia para o direito de passagem. Assim, os concessionários poderão trafegar, embarcar e desembarcar na malha de outros”, diz o especialista. Os concessionários, analisa Castro, tornaram-se monopolistas de um modal de transporte e fecham contratos específicos dentro de seus interesses para transportar cargas somente em suas malhas. “O incentivo na restrição é maior.”
Para a Região Sul do País, afirma Matheus Castro, seria interessante a regulamentação de OFIs (Operador Ferroviário Independente), que não são concessionários e nem têm carga própria, mas são proprietários de trens e podem oferecer o serviço de transporte ferroviário de cargas nas malhas ferroviárias de terceiros. “Pela forma como os contratos foram feitos e as exigências previstas neles, os concessionários deveriam atender metas de produção, de acidente e é basicamente isso o que fazem. O concessionário colheu os trechos mais viáveis, com mais demanda, e direcionou a totalidade dos investimentos para esses trechos de ferrovia”, observa Castro. De olho apenas na rentabilidade, os trechos secundários foram esquecidos pelos concessionários e estão ociosos e sem condições de operar.
VOLUME DE CARGA
Nas estações ferroviárias do Paraná, em 2017 foram embarcadas e desembarcadas 30,5 milhões de toneladas de produtos, volume 16% superior em relação ao ano anterior. A malha sul da Rumo Logística representou 97% desse total e os outros 3% ficaram com a Estrada de Ferro Paraná-Oeste.
O volume de carga transportado no ano passado aponta uma recuperação após um período de quedas sucessivas, entre 2013 e 2016, decréscimo resultante da redução no transporte de farelo de soja. Atualmente, o açúcar representa 25% do total de cargas embarcadas e desembarcadas nas estações paranaenses, seguido pela soja (23%), milho (11%) e celulose (6%).
Em 2017, o município de Paranaguá representou 35% do total de cargas embarcadas e desembarcadas no Paraná, seguido por Maringá (25%), Londrina (7%) e Araucária (7%), segundo levantamento feito pela CNI com base em dados computados pela ANTT.
Do total de linhas férreas sob a concessão da Rumo Logística, que detém a maior fatia do transporte ferroviário no Paraná, 28,8% estão ociosas e 26,7% são consideradas operacionalmente inviáveis, aponta a CNI.
PERDA DE COMPETITIVIDADE
Embora o frete do transporte ferroviário de cargas seja mais barato do que o rodoviário, as ferrovias perderam competitividade em razão do tempo longo de trânsito, opina o relator do Projeto Ocupação do Território Nacional pela Ferrovia Associado ao Agronegócio e consultor do IE (Instituto de Engenharia), Jorge Hori. “Uma carga que leva 30 dias para chegar ao ponto de destino não consegue concorrer com uma carga que leva três dias de transporte pela rodovia”, compara.
Esse modal só é competitivo quando permite trajetos diretos entre o embarque e o desembarque ou no caso das short lines, que são as ferrovias menores que servem para alimentar as ferrovias maiores ou rodovias estruturais por meio do sistema de distribuição, ressaltou Hori. “Querer mudar a matriz de transporte é uma questão de competitividade.”
O IE lista uma série de vantagens das ferrovias em relação às rodovias. Além de mais eficientes para transportes de longa distância, não há congestionamentos, o número de acidentes e roubos de cargas é menor, há menos emissão de poluentes e o impacto ambiental para a construção das linhas férreas é 2,5 vezes menor em comparação com as rodovias. O instituto cita ainda a grande capacidade de transporte com custo mais baixo de operação, a redução de perdas e o fato de ser um indutor de tecnologia e infraestrutura de utilidades para cidades, como energia e telecomunicações, por exemplo. Mas Hori lembra que o custo do investimento é maior e são necessários subsídios do Estado. “Quando o investimento é feito exclusivamente pelo operador, precisa de um prazo muito grande para amortizar esse investimento.”
O Brasil, acredita Hori, pode ampliar o transporte ferroviário de cargas, mas é preciso que tenha uma visão “de longo prazo e realista”. “Não pode se basear em romantismo, em nostalgia. O mundo mudou”, pondera.
ABANDONO
MARQUES DOS REIS
O intenso movimento de caminhões em frente a uma fábrica de ração destoa da típica calmaria de Marques dos Reis, distrito de Jacarezinho (Norte Pioneiro). A localidade com cerca de 2.500 habitantes está localizada no extremo nordeste do Estado. Não fosse o rio Paranapanema, seria conurbada com Ourinhos (SP). Apesar da proximidade com a cidade paulista, quem quiser fazer o trajeto é obrigado a desembolsar R$ 20,30, no caso de veículos de passeio.
“Viajar ficou muito caro, não tem condições. Antigamente, eu saia daqui e ia para Maringá, São Paulo. Hoje, nem saio mais de casa”, conta a aposentada Neuza Benedita Ribeiro, 66. O antigamente a que ela se refere é o recorte temporal anterior a 10 de março de 1981, dia em que percorreu o último trem de passageiros no ramal Ourinhos-Cianorte. “Era baratinho. O trem ia serpenteando as fazendas, a gente ia vendo as paisagens bonitas”, recorda-se.
A casa de Neuza Ribeiro faz fundos com a antiga estação ferroviária de Marques dos Reis. Fundado em 1937, o terminal era o primeiro ponto de parada para quem vinha de São Paulo e entroncamento dos ramais Ourinhos-Cianorte (sentido oeste) e do Paranapanema (sul), com destino a Jaguariaíva e Curitiba. “Hoje só passa trem de carga aqui. Tem dia que passa uma vez, no máximo duas. Tem dia que nem passa”, conta. Isso, apenas no primeiro ramal. O que tem sentido a Jacarezinho até Curitiba está desativado há mais de 15 anos.
De acordo com estudo recente da CNI (Confederação Nacional da Indústria), mais de 8.000 quilômetros de extensão da malha ferroviária do País estão abandonados, distância suficiente para ligar São Paulo a Nova York. O relatório que mostra o abandono de quase um terço da extensão das linhas férreas e expõe a dependência do País de um único modal, o rodoviário, foi encaminhado aos candidatos à Presidência da República.
Adílson Frederico, 50, é ex-ferroviário, um dos poucos que resistem nas casas ao lado à antiga estação. “Isso aqui era tomado por casas. Aqui nesse barranco tinha uma escadaria grande. O pátio ficava lotado. De longe, o povo escutava o apito do trem e já se animava, aguardando quem estava para chegar”, recorda-se emocionado. “Meu pai era ferroviário quando ainda tinha passageiros. Eu entrei na rede em 1987, já era só carga. Era mecânico”, conta.
Nos arredores da estação, um cemitério de vagões deteriorados ilustra a derrocada dos trens. Por entre as ferragens de um vagão, até uma árvore cresceu.
Frederico conta que, ao contrário de muitos outros povoados que desapareceram com o declínio do trem na região, Marques dos Reis conseguiu se manter. “O pessoal deu um jeito, mas que o trem faz falta, faz”, comenta. Ele diz que ajuda a cuidar do prédio que, em 2013, foi reformado por meio de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) entre o Ministério Público e a concessionária. “Estou sempre cuidando para o mato não tomar conta.” Apesar de reformado, o prédio permanece fechado.
JACAREZINHO
“Acho que o trem deve ser bem grande”, imagina a pequena Lívia Donini Machado, 7, ao gesticular com os braços abertos na antiga estação ferroviária de Jacarezinho.
Acompanhada da avó e da mãe, ela usa o prédio histórico como cenário para fotografias. De repente, a imaginação da menina dá ouvidos às histórias da avó: “Essa estação era muito movimentada. As pessoas andavam muito de trem, até porque as estradas não eram boas. É uma pena ver tudo isso sem uso”, lamenta.
Restaurado em 2013, também pelo TAC que abrangeu seis estações na região, o prédio sofre com o vandalismo. Pichações tomam conta das paredes. A dona de casa Simone Nunes Ferreira, 39, mora ao lado da estação. “A prefeitura até mantém um projeto de capoeira ali, mas precisava ter mais atividades. A maioria do tempo o prédio fica fechado, servindo de ponto de consumo de drogas e para outras coisas ruins”, denuncia.
Ana Maria Ramos, 29, lembra de quando andou pela última vez na Maria Fumaça que percorria a região. “Eu tinha 9 anos. Já não tinha trem de passageiros, mas tinha uma Maria Fumaça que levava a gente aqui por perto. Acho que devia ter coisas assim. A criançada de hoje só sabe ficar no celular. Deviam pensar em um atrativo desse”, sugere.
A filha dela, Nataly Cristina Ramos, 12, que usa a linha do trem para brincar com os irmãos, também usa a criatividade para tentar descrever o trem. “Devia ser bem legal andar nele. Acho que era espaçoso e ia soltando fumaça”, pressupõe.
CAMBARÁ
De volta ao ramal Ourinhos-Cianorte, a reportagem segue a visita até Londrina pelas estações abandonadas. Uma das únicas exceções é da Cambará. Apesar do péssimo estado de conservação, o prédio ainda abriga um escritório administrativo de turma da Rumo, concessionária que administra o trecho. Sem autorização para conceder entrevistas, a equipe apenas comenta a rotina básica de trabalho e lamenta a força subutilizada das ferrovias. A reportagem entrou em contato com a concessionária Rumo, mas não houve retorno.
Laerte da Silva, 77, mora ao lado da ferrovia. Veio de trem de Santa Cruz das Palmeiras (SP) para trabalhar e resolver ficar. Chegou jovem à cidade e há 12 anos mora ao lado da estação. “A gente sai nas estradas e vê tanto caminhão que dá até medo. Não que seja contra os caminhoneiros, mas é preciso equilibrar as coisas. Tem que ter trem também”, defende.
Assim como na maioria das cidades do Norte Pioneiro, a região da estação em Cambará acabou relegada à periferia. “A cidade acaba crescendo para outros lados. O que é antigo fica para trás”, lamenta. Durante a visita da reportagem, uma equipe da Polícia Militar fazia uma revista em um mototaxista suspeito de entregar drogas no bairro.
Seguindo o trajeto a oeste, o abandono fica evidente em Santa Mariana. Placas de madeira fecham portas e janelas da antiga estação, a mais deteriorada da região. Sem poder fazer manutenção no prédio privado, a prefeitura mantém apenas a conservação da Praça da Bíblia, construída ao lado da estação. “Ali a gente não pode mexer. O que dá pra fazer a gente faz, que é cortar o mato”, conta um dos funcionários, sem se identificar.
ESQUECIMENTO
Se o declínio do trem trouxe perdas econômicas para muitas das paragens, outrora mais representativas, no trecho entre Cornélio Procópio e Jataizinho a situação é ainda mais drástica. O traçado da BR-369 desviou o progresso de localidades como os distritos de Congonhas, em Cornélio Procópio, Cruzeiro do Norte, em Uraí, e Frei Timóteo, em Jataizinho. Encravadas em uma região de relevo acidentado que lembra cidades mineiras, quase todos os moradores mais antigos têm uma história sobre o trem para contar.
Se não há progresso, a tranquilidade conforta o pedreiro Eduardo Machado Severino, 41. “Nasci em Congonhas e nunca saí daqui. Quando tem serviço, vou à cidade (Cornélio Procópio) e volto correndo, gosto bem mais daqui”, conta. Apesar da tranquilidade, um problema bem característico das grandes cidades o afeta: a falta de moradia. Ele, a mulher e a filha de 4 anos moram no prédio abandonado da antiga estação ferroviária. E não são os únicos. Do outro lado de uma divisória de madeira, mora outra família.
Sem condições de pagar aluguel, a saída foi ocupar a estação, após a saída de outra família que morava lá. “Como o prédio é patrimônio histórico, não posso mexer em nada por fora, mas aqui dentro já instalei chuveiro. Agora, quero dar uma melhorada no piso”, planeja. No dia da visita da reportagem, havia duas semanas que eles estavam lá. “No começo foi estranho. O trem passa depois da meia-noite, treme tudo, mas não reclamo. Com o tempo a gente acostuma e, se Deus quiser, logo vamos ter condições de novo de arrumar outro cantinho”.
MEMÓRIA
PASSAGEIROS
Se o transporte de cargas ainda é limitado no Brasil, aos passageiros quase não há opções. Na década de 1950, as ferrovias brasileiras chegaram a transportar 100 milhões de passageiros ao ano entre as cidades. Atualmente, os comboios existentes servem mais a viagens turísticas, limitadas a trechos curtos. No Paraná, o único percurso disponível para viagens e turismo é o explorado pela Serra Verde Express, que liga Curitiba a Morretes pela ferrovia Paranaguá-Curitiba. Pelo trajeto que corta a Serra do Mar, passam cerca de 200 mil pessoas ao ano, segundo a empresa.
“O transporte de passageiros é um transporte caro, que a tarifa não remunera, então precisa de subsídios e precisa de política de Estado. É preciso avaliar se vale a pena subsidiar o transporte de passageiros de curta ou longa distância”, observa o relator do Projeto Ocupação do Território Nacional pela Ferrovia Associado ao Agronegócio e consultor do IE (Instituto de Engenharia), Jorge Hori. Do ponto de vista turístico, ressalta ele, pode ser vantajoso por gerar renda indireta.
Em razão do deficit “gigantesco” de transporte no Brasil, o País tem público para trens de passageiros, destaca Matheus de Castro, especialista em Infraestrutura da CNI (Confederação Nacional da Indústria). “Agora, se esse transporte poderia ser feito na malha existente atualmente, é outra questão.”
“Na Europa, o transporte de passageiros sobre trilhos é popular porque tem tradição e volume de passageiros em função do turismo. Mas na China e em outros países, os trens de média velocidade são vinculados à integração regional”, compara Hori. O engenheiro acredita que linhas ligando São Paulo e Rio de Janeiro ou São Paulo e Curitiba comportariam trens mais rápidos porque promoveriam o desenvolvimento das regiões, mas esse modelo de transporte exigiria um investimento muito alto. “O País precisa gerar renda e o retorno seria de longo prazo. Não se pode pensar em uma concessão com retorno em menos de cem anos. Sem isso, não tem condição de amortizar o investimento.”
DATA DE PUBLICAÇÃO 11 de Agosto de 2018
TEXTOS Celso Felizardo, Patrícia Maria Alves, Simoni Saris
IMAGENS Anderson Coelho, Gina Mardones, Patrícia Maria Alves
EDIÇÃO E PRODUÇÃO MULTIMÍDIA Patrícia Maria Alves
EDIÇÃO DE TEXTOS Fernando Faro
ARTE Patrícia Sagae e José Marcos da Silva
APOIO LOGÍSTICO Jenes de Almeida
DIAGRAMAÇÃO/IMPRESSO Gustavo Andrade DESIGN/WEB Patrícia Maria Alves
SUPERVISÃO DE PROJETO Adriana De Cunto (Chefe de Redação)
AGRADECIMENTOS A todas as pessoas que compartilharam suas histórias com a gente. À Ferroeste. À Serra Verde Express. Aos especialistas.
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